SABURA

Espero que todos os viajantes da blogosfera, que pausem aqui se sintam satisfeitos e possam relembrar-se de África, em especial da Guiné-Bissau.

terça-feira, 29 de março de 2011

Kononton III

Kononton agarrou-se à arma, colou-se à árvore e disparou na noite o pio da kikia . Era o sinal. Havia dias que esperavam emboscados: ele e Gabi, entrincheirados em lados opostos, em fogo cruzado, cada um no seu centenário poilão, abrigados pelo manto dos espíritos; N’Toni, Djamil, Idrissa viviam esses dias encovados, cobertos de folha morta, esperando hora de sair da terra para matar o inimigo, a frio e no silêncio do aço das suas facas.

Outra kikia piou ao longe: senegaleses e a gente de Konacry começavam a dar contas das suas vidas aos antepassados. Outro pio e outro e outro se foram repetindo. O inimigo já percebera certamente o sinal, mas era tarde demais. A cada pio uma vida se esvaía no sopro do grande espírito da floresta.

Estremeceu, nem sabia se de frémito de frio ou de morte. Deviam estar a chegar ao seu quadrante e ao de Gabiru. Ah, Gabiru! Atento! Como ansiava por apanhar aqueles óculos de ver na noite… paciência! Assim, tinham que dar o melhor de si. Ou o pior! Já nem sabia bem.

A orelha aguçada de Kononton ouviu o restolho rápido e perdido. O rugido de um único tiro. Um grito estrangulado. Um inferno de balas tracejou a noite. E os gritos dos que morriam lembravam-lhe os animais sacrificados no altar dos espíritos, degolados à mão de uma faca… e de novo o silêncio. O cheiro acre da pólvora acordou-o para a realidade.

Recomeçou a melodia da kikia: N’Toni, Djamil, Idrissa… Gabi não respondeu. O coração de Kononton desvairou. Largou a protecção dos espíritos e correu para o esconderijo de Gabi. Ali estava, encostado na raiz de poilão, firmabundo, amortiçado, a kalashnikov apontando aos seus olhos o caminho das estrelas.

-Kon’ton! É difácil!

-Rapaz, é difácil o quê? Ainda brincas?

-Morrer! É difícil, dói! Mas é fácil… já sinto o sono dos antepassados a embalar-me. Nha garandis estendem-me os braços.

Kononton aconchegou-o no colo, querendo partilhar-lhe a vida e as lágrimas rolaram-lhe, fecundando aquela morte, dessedentando o trilho dos mortos. O resto do grupo ajoelhara, vergado à desgraça, à ausência do Alegre.

- Kon’ton… ora di bai .

- Nô na contra, Gabi… nô na contra !

E Gabi deu-lhes o último sopro sussurrado –“é difácil”- e todos afirmaram, mais tarde, terem visto naquela hora, sem sombra de dúvida, o seu vulto a tomar o caminho da floresta funda. E que, dali a momentos, tinham ouvido, sem sombra de dúvida, o seu pio de kikia!

-Kon’ton, falou Idrissa, só matámos meninos. Duas dúzias deles, contei-os um cada um! Só mandaram meninos p’rá luta, Kon’ton! Porquê? Porquê?

E desatou a chorar. E pelos meninos que matara e pelo menino deles. Kononton abraçou com mais força Gabi e deu as ordens necessárias ao enterro. Eles não sabiam, mas eram as últimas ordens: N’Toni, as folhas cozidas que deram o óleo para conservar o corpo; Idrissa, as folhas de palmeira para lhe servir de leito e Djamil a caça e o vinho de palma para o tchur . E ali ficaram oito dias, longos dias, convivendo na despedida ao amigo, imersos em memórias silenciosas, comendo e bebendo em sua memória festiva: “É difácil”!

Ao nono dia Kononton enviou-os à tabanca, com os pertences do Viajante Alegre, para que os parentes pudessem também honrar Gabi com os seus oito dias de festa.

Deixou-os seguir, olhou os abutres no céu espreitando o cheiro morto dos meninos-soldados e virou a Norte. Nada valia a pena matar meninos! Melhor voltar à terra tuga. Outra vez!

Sem comentários:

Enviar um comentário