SABURA

Espero que todos os viajantes da blogosfera, que pausem aqui se sintam satisfeitos e possam relembrar-se de África, em especial da Guiné-Bissau.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Kononton ( I )

I



Kononton chegou-se mais ao leve pano que o embrulhava, à kalashnikov e à faca, companheira silenciosa das lutas mais ferozes. E a memória e o desejo carrearam-no até ao rosto imaculado e sereno de Nhem-Nhem, a sua namaka [1]. E, por ela, aos seus filhos: Woro, Djaló, Djiba e Ndani.

O treino e o instinto de sobrevivência permitiam-lhe as saudades e a vigilância, como cobra prestes a rebondir sobre o invasor do seu território. Aspirou fundo e silenciosamente o ar, espairecendo os gritos cegos dos senegaleses e dos soldados de Conackry e dos seus próprios compatriotas, fakiadus [2], degolados no calor de lutas nocturnas.

Era um matador! E a experiência dizia-lhe que a morte surgia do nada: ora debaixo da terra, ora detrás de uns arbustos, ora do cimo dum cajueiro ou duma palmeira, ora no silvo de uma bala, dum rocket ou no estrondo duma granada. Quando chegava colada ao sono do silêncio, essa era a pior das mortes. Sem tempo de encomendar a alma aos antepassados, sem tempo de um pensamento para os próximos. Morte! Medonha! Morte!

Por isso era importante espantar o sono e vigiar. “Que diabo” – pensou – nunca vi as noites de Fevereiro tão frias. Será o frio da morte?” E aconchegou-se mais ao pano frágil e às armas, dando-lhes a mão possessiva, como a filhos inocentes.

Ai, os filhos! Há quanto tempo não os via! A mais nova já leria? E Djabi? Namorava? E os rapazes saberiam ajudar a mãe na luta pela sobrevivência na grande cidade? Já teriam feito o fanado? Teriam escapado ao paludismo? À cólera? Ao tifo? À sida?

Sentiu a revolta enrolar-se nele e aquecer-lhe o estômago – seria fome? Ah! Como odiava os políticos e os Chefes. Malgossada [3] hora em que fora para Portugal, treinar nas tropas especiais. Saíra cabo e, mal chegara, entronizaram-no tenente, numa daquelas promoções que só acontecem na terra.

Percebeu rapidamente que os galões não lhe aumentaram o estatuto. Os Volvo, os Toyota, os Patrol, os Mitsubishi que ambicionava, afinal, continuavam a ser para os Chefes. Continuou sem salário, sem farda nova, até ao dia em que o mandaram levar para a linha de fronteira vinte mancebos e infiltrar-se nas matas e aldeias, para combater os rebeldes senegaleses.

Laboriosamente no meio de nada e de ninguém, ensinou-os a sobreviver à custa da faca, da espingarda, da ajuda da natureza, aprendendo a escolher as raízes comestíveis, as bagas inofensivas, a descobrir a água potável em lugares insuspeitos, a esquecer a família, as namoradas, os amigos o país… A esquecer-se de si!

E viu-os tornarem-se homens maduros, duros, empedernidos, adversos a doença, à fome, à ausência. A noite prometia frio e fome. Ambos silenciosos cúmplices da morte!

___________________________________________________________________________________
[1] primeira esposa; [2] esfaqueado; [3] má hora.

Sem comentários:

Enviar um comentário