SABURA

Espero que todos os viajantes da blogosfera, que pausem aqui se sintam satisfeitos e possam relembrar-se de África, em especial da Guiné-Bissau.

sábado, 12 de junho de 2010

Os filhos Nhaaala

OS FILHOS DE NHAALA

Naquela sexta-feira dum mês quente de Agosto, madrugada dentro, o grupo dirigia-se ao rio. E cantava:
“Nhaala diz: Vim para vos ver
Vi-vos, vocês não sabem
Vi-vos em silêncio
Vi-os a vocês todos
Vim para vos escolher
Escolhi-vos, pessoas da claridade
Vi-vos, pessoas da escuridão
Vi-os a vocês todos.”
Estranho grupo aquele. Quase cinquenta mulheres, encabeçadas pelo líder Ze. Elas caminhavam alegrando a própria madrugada, umas vestindo panos de casadas, outras não. Umas grávidas, outras com bebés às costas, outras estéreis. Por vezes, algumas dançavam sós, animando e marcando o ritmo compassado da marcha.
Na moransa de Ze, há uma “maternidade”. No exterior uma árvore medicinal, de ramos baixos, a siti malgós, o óleo amargo, usado para curar o umbigo das crianças recém-nascidas.
Chegados ao rio, Ze dispõe as mulheres circuleando e chama uma, muito jovem, olhos murchos e curva a cabeça. A sua alma fora roubada por um feiticeiro e, por isso, estava doente.
Ze sentou-se no chão com a sua paciente, abriu as entranhas dum pintainho e leu os desejos de Nhaala. De repente, gesticula, possesso, faz sinal aos tambores, sai com um jarro floresta adentro para apanhar a alma na direcção que está prisioneira.
Depois regressa, esgotado, olhos vazos, e dá a beber à jovem, maquinalmente, a mistela do jarro, restituindo-lhe a alma, enfim liberta e avivada.
Estrondeiam os tambores, as palmas, os gritos histéricos, e os pés, chocalheando os caroços de mango no chão, retomam o passo para o rio. Ze guia o seu rebanho durante um quilómetro. Junto ao rio há um grande santuário, onde centenas de vestígios se atropelam: ossos de animais, cordas, recipientes e garrafas.
Todas se ajoelham a um sinal: “Rezemos a Nhaala, dono do rio, pelos remédios que nos dará, pelas crianças que nos dará. Seremos purificados. A água salgada é o nosso remédio. A altura de as mulheres darem à luz e a maré do rio vão juntas. A mulher dá à luz quando a maré está cheia, as pessoas morrem quando a maré está vazia. Seremos lavados para sermos puros!”
Uma a uma, e com grandes precauções, as mulheres vão à água, vestidas e derramando água com as mãos sobre a parte superior dos seus corpos. A imersão na água fria é um bálsamo para as horas a correr e a dançar no calor e na poeira.
Minutos depois, fora d’água, todas se apressam no regresso, enquanto o sol ainda alteia no céu. No caminho param na moransa de Abdul, o Velho. O homem mais idoso convida a todos, após a libação no chão, a partilhar a cabaça com aguardente de cana. Ze diz: “Agora o meu coração está fortalecido. Ninguém morrerá”.
E de novo se retorna em peregrinação. Ao aproximar-se da moransa de Ze, as mulheres correm mais e mais depressa. Finalmente, exauridas pelo correr e pelo gritar, chegam. Imediatamente, o líder lava, uma a uma, as cabeças das mulheres e das crianças.
E em redor todas as outras batem palmas, cantando:
“Digo-vos: Lavai-vos!
Nhaala diz: vou lavar-vos!
Ele veio para purificar-nos, ouviram?
Quero lavar-vos!
Veio purificar-nos, ouviram?
Quero lavar-vos!
Vim purificar-vos!
Ele purifica-nos, ouviram?
Ouçam todos!
somos filhos de nhaala!

11 de Março

O comboio se esfumava nas linhas dentre a estação do Aquém para a estação do Além. Na carruagem 13 Fatwa olhava pelo rabinho do olho para o banco vizinho, onde se ensonava um rapazinho: Jesus Maria.
Fatwa sentia o olhar reprovador dos pais: dos seus e dos dele. Ela bem queria dedilhar umas conversas com aquele menino, mas papá e mamã sempre lhe disseram:
-Com branco d’Europa não pode a gente intimizar! ‘Viu?
Agora se entristonhava com a lembrança fumada dos amigos de Gã Mamadu, nas lalas do rio Mansoa. “Não! – lhe avisava na cabeça a voz de mamã – Caso senão nos encativamos”!
Jesus Maria era a companhia! Rabejou mais seu olhinho e viu-lhe piscando. O coraçãozinho inchou-se com a distinção daquele olhar.
E no mesmo tempo a carruagem se inflamejou no Além, fogueando o crepúsculo. E quando os ferros e o fogo e as cinzas se pousaram, o chão se fecundara: o sangue da menina e o sangue do menino se convergiram no mesmo e nessa quentura se envolutearam na terra do Tempo Sem Fim.
-Tens nome?
-Não! Agora sou inominado. E tu?
-Também sou inominado. Que aconteceu?
-Maldade. Muita e má maldição! Querem que aceitemos a mandança dos mortos. Nã! Nem que cobra seja canhota.
-Não sentes uma sozinhidão?
-Isso era lá nas nossas terras lamacentas do Mansoa. Agora somos inorganismos. Estamos mais pertos do Deus único. Será que Ele também está abastecido de solidões?
-Nã! Nós lhe dedilharemos conversinhas de embalar. Olha! E a esperança? Terá sido desmorada?
-Nunca! A sua moradia somos nós. Mastigámo-la. Foi da fome na nossa terra. Agora faz parte do nosso sangue. Sabes? Os homens vão-se tornando bichos, espalhando suas humanas selvajarias e fazendo companhia às toupeiras em suas subterraneidades. Mas um dia verão a Luz.
E os dois continuaram se entreconversando, felizes do seu estado, tão felizes como “sapato que trabalha deitado na terra, tão rasteiro que nem dá conta quando morre”.